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2 comments | 4.3.07

Algumas matérias nunca irão ao ar. É o caso de uma que produzi nessa madrugada. A denúncia era de que uma farra do boi aconteceria na Ilha. Ainda na emissora preparamos todo o equipamento, inclusive câmera escondida. Mesmo à paisana, decidimos que seria melhor irmos com o carro que identifica a emissora - a única escolha acertada da noite. Meia-noite chegamos ao local marcado com a fonte. Uma festa. Integro-me às pessoas, a maioria bêbada ou chapada. Estou em busca de alguém com alcunha de time de futebol. Abordo duas pessoas que me dizem que ele já não está mais na festa. Outro aponta para um careca, bermuda de surfista sem camisa, com um copo de cuba na mão dizendo que ele é quem sabe das coisas. Chego dizendo quem sou. Pergunto do cara com nome de jogador. Ele confirma que ele não está mais ali e que ele estava por dentro de tudo. Esse careca é há pouco tempo o novo chefe do tráfico de um dos morros da capital e ainda esta tentando mostrar quem é que manda. Ele está de aniversário. Na própria festa muitos duvidam da capacidade do novo chefe em proporcionar a tão esperada farra do boi.
- E o boi, pergunto.
Já está comprado. Mil e cem reais. Vem lá de Santo Amaro.
- O que falta pra trazerem o boi?
Pagar o frete que é 250. Temos noventa reais.
Nessa hora nossa câmera flagra a movimentação do dinheiro. Como se planejado, é um close no bolso do senhor encarregado de cuidar das finanças. Eles pedem mais tempo, enquanto isso exploramos o local. A festa em que a farra do boi é articulada acontece dentro da Universidade Federal de Santa Catarina, a menos de 20 metros da central de segurança. Lá fomos nós, com a câmera. Digo que perdi minha carteira no bloco do jornalismo. Entramos na central. Alguns seguranças estão de pernas pra cima. Ao fundo o som do pagode mistura-se com os ruídos dos rádios de comunicação.
- Como é a cor da tua carteira?
Preta, respondo. Já perguntando da festa.
- É alguma dessas aqui?
O segurança questiona enquanto mostra uma carteira branca recheada de cartões.
Não, digo. Pode ter festa aqui?
- É proibido. Mas não podemos fazer nada. Foi alugado. Tem um monte de maloqueiros aí, tá vendo.
O outro segurança fala e aponta para fora, onde algumas motos passam empinadas.
Já do lado de fora, confiro com meu cinegrafista que o flagrante foi feito.
Está nítido o "é proibido, mas não podemos fazer nada". A matéria começa a nascer.
E também a morrer.
são 3h e nada do boi. Nossa presença já estava tão escancarada que dois homens dizem que não precisamos mais gravar escondidos, uma vez que todos já sabem onde está a câmera. Alguns até fazem gracinhas na frente da lente. Isso não me preocupa. Temos o consentimento do chefe.
- Sou eu quem manda aqui, diz o careca surfista.
Nós só vamos mostrar a farra se tu garantires a nossa segurança lá em cima, respondo.
Os mesmos dois homens saem da festa. Percebo que eles não gostaram muito da idéia de acompanharmos a farra, mesmo com a autorização do chefe. A essa altura, um homem de uns 50 anos aproxima-se e pergunta qual e minha emissora.
- A TV de vocês sempre mostrou o lado "bom" da farra, diz ele.
E me pergunta e sou a favor da farra. Digo que só viemos para registrar a farra.
Nessa hora, hesitei pela primeira vez. Qual era o interesse desse cara que veio se apresentando com a astúcia de quem ja havia feito televisão?
- Já trabalhei com fulano, sicrano e beltrano.
Vomitou o nome de algumas figurinhas tarimbadas da mídia. Penso comigo: mas que grande merda! Desanimado com essa revelação, dou atençao ao meu cinegrafista. Nessa hora, a festa já estava meio vazia. Lá do fundo gritavam que mais de 500 pessoas estavam esperando o boi no local marcado. Sei de pelo menos cinco lugares diferentes onde a farra deveria acontecer.
O tempo passa e a quantia para pagar o frete fica cada vez mais longe de ser alcançada. Desmotivado outra vez, ocorre-me como é difícil para um chefe do tráfico conseguir cem reais. Abadono o pensamento. Despeço-me de todos "farristas". Pego o telefone celular do chefe. Havia combinado que antes de levar o material ao ar, entraria em contato. Entro no carro e deparo-me com a face da agonia. Meu cinegrafista pergunta se eu lembrava daqueles dois sujeitos que fizeram gracinhas em frente a câmera. Digo que sim.
- Pois bem, eles estão nos esperando no morro.
E o boi? Ironizo.
Perdi as contas de quantas vezes me disseram "se falares mal da farra te mato".
Na volta, contemplo a cidade que toma um banho de lua enquanto o cinegrafista diz que nos livramos por muito pouco de uma tragédia. Na verdade, perdemos uma grande matéria.

2 Comments:

Blogger Ainá Vietro said...

cara. conversaremos sobre isso ao vivo!
=)

5:09 PM

 
Blogger Lili said...

Olá. Sou de Florianópolis também e linkei o seu post em um que estou fazendo sobre a Farra. Contra, é claro. Abs

1:01 PM

 

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